Um pouco de palavra

"Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de lua mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d’agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em baldo, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra"

Danuza Leão


*Duas bolas,
por favor

         Escrito por Danuza
Leão*


        Não há
nada que me deixe mais frustrada

        do que pedir sorvete de
sobremesa,

        contar os minutos até ele chegar
        e aí ver o
garçom colocar na minha frente

        uma bolinha minúscula do meu sorvete
preferido.

        Uma só.

        Quanto mais sofisticado o
restaurante,

        menor a porção da sobremesa.
        Aí a vontade que
dá é de passar numa loja de conveniência,

        comprar um litro de sorvete
bem cremoso

        e saborear em casa com direito a repetir
quantas

        vezes a gente quiser,
        sem pensar em calorias, boas
maneiras ou moderação.


        O sorvete é só um exemplo do que tem sido
nosso cotidiano.


        A vida anda cheia de meias porções,
       
de prazeres meia-boca,

        de aventuras pela metade.
        A gente
sai pra jantar, mas come pouco.


        Vai à festa de casamento, mas
resiste aos bombons.


        Conquista a chamada liberdade
sexual,

        mas tem que fingir que é difícil
        (a imensa maioria
das mulheres

        continua com pavor de ser rotulada de
‘fácil’).


        Adora tomar um banho demorado,
        mas se contém
pra não desperdiçar os recursos do planeta.


        Quer beijar aquele
cara 20 anos mais novo,

        mas tem medo de fazer papel
ridículo.


        Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD,
       
esparramada no sofá,

        mas se obriga a ir malhar.
        E por aí
vai.


        Tantos deveres, tanta preocupação em ‘acertar’,
       
tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação…


        Aí a
vida vai ficando sem tempero,

        politicamente correta
        e
existencialmente sem-graça,

        enquanto a gente vai ficando
melancolicamente

        sem tesão…

        Às vezes dá vontade de
fazer tudo ‘errado’.

        Deixar de lado a régua,
        o
compasso,

        a bússola,
        a balança
        e os 10
mandamentos.


        Ser ridícula, inadequada,
incoerente

        e não estar nem aí pro que dizem e o que
pensam a nosso respeito.

        Recusar prazeres incompletos e meias
porções.


        Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez se
rebelou

        e disse uma frase mais ou menos assim:
        ‘Deus,
dai-me continência e castidade, mas não agora’…


        Nós, que não
aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem,

        podemos (devemos?)
desejar

        várias bolas de sorvete,
        bombons de muitos
sabores,

        vários beijos bem dados,
        a água batendo sem
pressa no corpo,

        o coração saciado.

        Um dia a gente
cria juízo.

        Um dia.
        Não tem que ser agora.

       
Por isso, garçom, por favor, me traga:

        cinco bolas de sorvete de
chocolate,

        um sofá pra eu ver 10 episódios do ‘Law and
Order’,

        uma caixa de trufas bem macias
        e o Richard Gere,
nu, embrulhado pra presente.

        OK?
        Não necessariamente nessa
ordem.


        Depois a gente vê como é que faz pra consertar o
estrago . . .

 

 Bjs e tenham um lindo dia!